Quando o Corpo Grita
Uma crônica sobre o caos, a presença e a delicadeza de seguir sentindo.
Tenho visto muitas pessoas à minha volta se arrastando com dor.
Corpos que gritam — implorando para serem notados, cuidados — enquanto os sinais são ignorados, camuflados com analgésicos e a velha desculpa: “não tenho tempo”.
Postergamos os cuidados com a saúde física por anos, como se o sofrimento fosse normal. E a saúde mental? Essa, ainda mais sutil, muitas vezes só dá sinais quando já transbordou no corpo. O corpo, esse veículo sagrado da nossa existência, é sofisticado. Ele avisa quando algo não vai bem. Mas o que acontece quando o empurramos para o extremo?
O que acontece quando ignoramos os pequenos alertas?
Quando mascaramos a dor com comprimidos e seguimos, como se a vida não pudesse parar?
É contraditório. É negligente.
E, sim, é assustador como aprendemos a naturalizar esse abandono.
"O corpo é o templo da alma. Mantenha-o puro e limpo
para que a alma possa habitar nele com paz."
— B.K.S. Iyengar
Eu já estive nesse lugar. Precisei adoecer para enxergar. Precisei quebrar para entender. Foi só quando perdi a paz que compreendi o valor dela. Descobri, da forma mais dura, que nenhum salário no mundo vale a minha saúde mental.
Tem dias em que a vida exige demais. E talvez ela esteja mesmo exigindo.
De mim, pelo menos, tem exigido.
Estou no meio de uma fase intensa, onde tudo parece acontecer ao mesmo tempo. Mudança de país. Duas crianças para cuidar. Um casamento para nutrir. Estudos, trabalho, festa de aniversário para planejar, uma casa que precisa funcionar... Pratos girando em todas as direções.
Mas, no meio disso tudo, tem algo que eu não posso perder: o meu centro.
Hoje eu sei: quanto mais corrida está a vida, mais preciso da disciplina de voltar para mim.
Sim, disciplina. Porque tudo que fazemos exige energia. Cada tarefa, cada entrega, cada decisão. Se não paro conscientemente para me abastecer, o corpo cobra. E ele cobra mesmo.
O corpo tem esse papel ingrato e, ao mesmo tempo, maravilhoso: gritar quando a alma já está exausta — e a gente não quis escutar.
A dor que não passa.
A insônia persistente.
A inflamação sem causa aparente.
A queda na imunidade.
Chamamos de doença.
Mas, muitas vezes, é o corpo apenas dizendo o que os outros corpos — o mental, o emocional, o energético — já tentavam comunicar há tempos.
A vida pede presença.
E o corpo, quando fala, é só mais uma tentativa de nos trazer de volta pro agora.
Então, por que esperar adoecer?
Por que deixar que o caos nos engula antes de lembrarmos que a pausa é uma escolha — e não um luxo?
Não se trata de ser perfeita ou constante. Isso seria cruel.
Trata-se de observar. Sentir. Escutar. E, quando for possível — mesmo que por um minuto — voltar para si.
Em tempos de calmaria, o cuidado deveria ser hábito.
Em tempos de caos, ele precisa ser prioridade.
Outro dia, me peguei percebendo o quanto essa mudança recente tem me revelado algo que eu não via antes: eu criei raízes.
Sempre achei que não era uma pessoa de raízes.
Saí de casa cedo. Sempre me adaptei rápido.
Mas, desta vez, doeu partir. Doeu me despedir do meu país. Doeu deixar o que era lar.
Um senhor amigo me disse uma vez:
“Quanto mais velho a gente fica, mais raízes quer fincar.”
Talvez eu esteja começando a entender.
Mudanças remexem a terra.
E tudo o que remexe, convida a semear.
Então, eu tenho feito o que dá.
Não tenho uma hora inteira para meditar, como gostaria.
Mas tenho encontrado cinco minutos antes de dormir.
E nesses minutos, eu paro. Eu respiro. Eu agradeço pelo dia que foi.
Me perdoo pelo que não consegui.
Me reconheço pelo que fiz.
E volto para mim.
É um momento de autorregulação. De entrega.
Um encontro com Deus, com o que é sagrado em mim.
Funciona como um remédio.
Uma pílula de presença.
Uma vitamina para a alma.
E é por isso que, hoje, te convido:
Aí mesmo, onde você está,
deixa o celular de lado por um instante.
Fecha os olhos. Respira.
Sente seu corpo.
Percebe se há alguma tensão, dor, coceira, peso.
Apenas observa.
Sem querer mudar nada.
E respira.
De novo.
E mais uma vez.
Presença também é autocuidado.
E ela pode começar com um único minuto.
-KF